quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

CARTA DO LUÍS, AGRICULTOR, AO AMIGO ZÉ

Mê querido Zé, quanto tempo!
Eu sou o Luís, tê colega de ginásio nocturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar da aldeia sempre tava atrasado, tás lembrado? O Luís do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de uns quilómetros, aqui na serra, para apanhar o autocarro por isso o sapato sujava.
Se não lembraste ainda eu te ajudo. Lembras do Luís Cochilo... eh, eh, eh, era eu. Quando eu descia do autocarro de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormir já era mais de meia-noite
De madrugada mê pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Luís Cochilo, tás lembrado Zé?
Pois é. Estou pensando em mudar para viver ai na cidade que nem tu. Não que seja ruim, a aldeia aqui, até que é bom. Muito verde, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de tês amigos ai da cidade.
Tou vendo toda a gente a falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente.
Vê só. A fazenda do pai, que agora é minha (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os aldeões daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter, porque não se pode entalar os postes por dentro, por causa de uma tal licença especial que criaram.
Minha água é de um poço que mê avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um home do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, mais uma taxa de disponibilidade, porque a água vai se acabar. Se ele falou deve ser verdade, não é Zé?
Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi ...) contratei o Jaquim, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Contrato assinado, salário mínimo, tudo direitinho como o guarda-livres mandou. Ele morava aqui comnós num quarto dos fundos de casa. Comia ca gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e do Ministério do Trabalho, elas falaram que se o Jaquim fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra nocturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana ai não param de fazer leite. Ou os bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário?
Essas pessoas ainda foram ver o quarto do Jaquim, e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Mê Deus! Eu não sei como encumpridar uma cama, só comprando outra, não achas, Zé? O candeeiro eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz eléctrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Jaquim.
Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Zé, tive que pedir ao Jaquim pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelo fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. A semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque gamou um chocolate pro bolso no supermercado. Foi pra esquadra, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo.
Depois que o Jaquim saiu, eu e Maria (lembraste dela? Casei) tiramos o leite às 5 e meia, ai eu levo o leite no tractor até a beira da estrada onde o carro da cooperativa vem todos os dias, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu deito fora.
Os porcos já se foram, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos, as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O procurador disse que desta vez, por esse crime, ele não ai mandar- me prender,. Ô Zé, ai quando vocês sujam o rio também pagam multa grande?
Agora pela água do mê poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios ai da cidade. A pocilga já acabou as vacas não podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, quando vou na capital nem vejo mata, nem rio limpo. Só vejo água fedida e lixo boiando pra todo lado, mais uns contentores por aquelas estradas fora.
Mas não é o povo da cidade que suja o rio, Zé? Quem será? Aqui nos campos agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora!. Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.
Fui no serviço do ministério daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Serviço da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vim fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo ai eu vi que a arvore ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do Procurador porque virei criminoso reincidente. Primeiro foi os porcos, e agora foi a madeira. Acho que desta vez vou ficar preso.
Tô preocupado Zé, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mi euros por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco a fazenda numa semana. Então é melhor vender, e ir morar onde toda a gente cuida da ecologia.. Vou para a cidade, ai tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.
Eu vou morar ai com vocês, Zé. Mas fica tranquilo, vou usar o dinheiro da venda da fazenda primeiro pra comprar esse tal de arca electrica. Aqui na aldeia eu tenho que ir buscarr tudo na fazenda. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Ai é bom é só abrir a arca que tem tudo. Nem dá trabalho, nem planta, nem semeia, nem cuida de galinha, nem porco, nem vaca é só abri a arca que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisar de nós, os criminosos aqui do campo.
Até mais Zé.

PS: Ah, desculpa Zé, não pude mandar a carta em papel reciclado pois não existe por aqui, mas aguarda até eu vender a fazenda.

Sem comentários: